Luanda - A crise política na Síria, cujo governo foi derrubado a 8 de Dezembro, após ofensivas da coligação islâmica Hayat Tahrir Al-Sham (HTS), pondo fim aos 54 anos do “reinado” da família Assad, constituiu um dos pontos marcantes do ano de 2024, no Médio Oriente.
Por Domingos Simeão, jornalista da ANGOP
A raiz do conflito histórico prende-se com fricções étnicas entre sunitas e xiitas, que disputam há anos a hegemonia do poder local, onde os primeiros são a maioria entre a população, cerca de 70%, e os segundos, de que fazem parte os aluitas, da origem do líder deposto Bashar Al-Assad, com quase 13%, eram submissos aos Sunitas que governaram a Síria após a sua independência da França, em 1946.
Devido a esta situação, muitos deles inscreveram-se no exército sírio da época, entre eles o pai de Bashar Al-Assad - Hafez al Assad - um militante do partido Baath, que conseguiu ascender a ministro da defesa em 1966 e em 1970 tornou-se Presidente da Síria, catapultando a sua etnia e muito dos seus membros às esferas do poder em detrimento dos sunitas.
No entanto, as fricções entre estas etnias cresceu e, em Junho de 1979, a Irmandade Muçulmana (ligada aos sunitas) matou 50 cadetes alauítas numa academia militar em Aleppo. Em 1982, um grupo aniquila inúmeros lideres partidários do presidente em Hama, e em resposta o exército tirou a vida de pelo menos 20 a 40 mil habitantes da região, de acordo com a DW.
Após a sua morte, em 2000, por doença (ataque cardíaco), Hafez Assad, que liderou por 30 anos, foi sucedido no poder pelo filho Bashar Al-Assad, um médico oftalmológico, na altura com 34 anos (agora com 58), após um referendo popular no qual obteve 97,29% de votos.
Acções de Assad e protestos populares
De acordo com a Euro News, logo que Assad assumiu o poder libertou os presos políticos, abriu os salões para intelectuais (onde cidadãos podiam falar da arte, cultura e política), levantou as restrições económicas, permitiu a entrada de bancos estrangeiros e às importações, entre outras acções que tornaram dinâmica a vida sócio-económica do país, medidas conhecidas por “Primavera de Damasco”, que deu esperanças aos sírios por uma vida livre e melhor, como descreveu a imprensa internacional.
Contudo, após 1000 intelectuais terem assinado uma petição pública em 2001, apelando à democracia multipartidária e a maiores liberdades, e de outros terem tentado formar partidos políticos, os salões foram encerrados e prendidas dezenas de activistas, acção que expôs Bashar Al-Assad (tenente-general na altura) como anti-democrata.
Em 2011, aquando da Revolução da Primavera Árabe, que visava o derrube de governos ditatoriais no norte de África e no Médio Oriente, cidadãos sírios, cujo país foi um dos visados, manifestaram-se defronte ao Parlamento local e em algumas embaixadas, exigindo maior liberdade de imprensa, direitos humanos e a aprovação de uma nova legislação constitucional, mas foram reprimidos.
Na sequência, os cidadãos armaram-se e tornaram as suas contestações em revoltas, que posteriormente evoluíram para uma guerra civil generalizada no país, com a envolvência de soldados desertores do exército e de várias facções islâmicas, entre eles a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, que haviam combatido contra as tropas dos EUA no Iraque, segundo o site brasileiro BdF (Brasil de Facto).
Após perder inúmeras localidades no país, entre elas Aleppo, a segunda maior cidade da Síria (depois da capital Damasco), o Presidente Al-Assad inverteu a situação com recurso aos apoios da Rússia e do Hezbollah, ajudada pelo Irão, que permitiu a reconquista de grande parte dos territórios em 2016, excepto a província de Idlib (norte da Síria) para onde se confinaram os insurgentes e jihadistas (Exército da Conquista Yaish al-Fatah - uma coligação formada por grupos rebeldes islamistas como Ahrar al-Sham, e extremistas da Frente al-Nusra (ex-facção síria da Al-Qaeda), assim como a Hayat Tahrir al-Sham (HTS), como indica o Jornal do Brasil.
Mas, a retirada dos apoios da Rússia, actualmente concentrada na guerra contra Ucrânia, e do Hezbollah, desgastado pelas mortes dos seus líderes políticos e militares no conflito com Israel no Líbano, tornaram a Síria frágil militarmente, momento aproveitado pelos insurgentes para formarem uma coligação com vista ao ataque final contra o governo a partir de Idbil e Aleppo.
Liderados pelos Hayat Tahrir Al-Sham (HTS), também denominado por “Comando de Operações Militares”, o grupo iniciou a ofensiva a 29 de Novembro e derrubou o governo a 8 de Dezembro, obrigando a fuga para a Rússia do Presidente Bashar Al-Assad, pondo fim aos 53 anos de poder da “Família Assad” na Síria.
Consequências da guerra
A guerra civil de 14 anos causou a morte de pelo menos 600 mil pessoas, cerca de dois milhões de feridos e pelo menos 13 milhões de deslocados, dos quais 7 milhões emigraram, sobretudo para a Europa e países vizinhos como a Turquia, segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos.
Na economia, o Produto Interno Bruto (PIB) estava estimado antes da guerra em 67,5 biliões de dólares, ocupando o 68º lugar entre melhores economias do mundo (196 países), segundo o site DW. Em 2023, caiu para o 129º no ranking com apenas 9 biliões de dólares, de acordo com estimativas do Banco Mundial.
Neste mesmo ano, uma hiperinflação remeteu mais da metade dos sírios à pobreza extrema, incapazes de garantirem as necessidades básicas de alimentação, segundo o Syrian Center for Policy Research (SCPR), uma organização independente de análises económicas local.
Os dois principais pilares da economia da Síria – o petrolífero e a agricultura – foram afectados pela guerra, tendo em 2010, as exportações de petróleo sido responsáveis por cerca de um quarto da receita do governo, e a produção de alimentos contribuído com um percentual semelhante para o PIB, segundo dados desta organização.
O conflito afectou também as infra-estruturas, causando danos alarmantes aos sistemas de electricidade, transporte e saúde.
Futuro político
O futuro da Síria continua a preocupar a comunidade internacional pelo facto de existir o receio de que o país possa mergulhar numa instabilidade política, devido às suas múltiplas etnias.
Os Assad foram alauítas, logo teme-se que esta minoria sofra represálias pelos sunitas, de onde é oriunda grande parte dos grupos terroristas que assumiram o poder, adianta o Jornal do Brasil.
Saída diplomática
Após a queda das autoridades locais, o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se de emergência no dia 9 deste mês para debater a situação, tendo a Rússia, que solicitou a reunião, afirmado que os países-membros estão "mais ou menos unidos" na preservação da integridade territorial síria, segundo a DW.
"O Conselho esteve mais ou menos unido sobre a necessidade de preservar a integridade territorial e a unidade da Síria, para garantir a protecção de civis e que a ajuda humanitária chegue", afirmou à imprensa, o embaixador russo na ONU, Vassili Nebenzia.
Já o vice-embaixador dos EUA, Robert Wood, declarou que esta é "uma situação muito fluida". Ninguém esperava que as forças sírias caíssem como um castelo de cartas", afirmou.
Igualmente, diplomatas dos EUA, da Liga Árabe e da Turquia reuniram-se no dia 14 de Dezembro na Jordânia para discutir planos e objectivos para ajudar a Síria na sua transição governamental, naquela que foi a primeira tentativa diplomática neste sentido, segundo a Euro News.
Na altura, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, afirmou que existe um consenso alargado entre os parceiros para que o governo sírio seja inclusivo, respeite os direitos das mulheres e das minorias, rejeite o terrorismo e proteja os supostos “stocks” de armas químicas da era Assad. DSC/JM/ADR