Luanda – No quadro da celebração do Dia da Cidade de Luanda, a 25 deste mês, a ANGOP publica o levantamento abaixo, de autoria da arquitecta angolana Maria João Teles Grilo.
Por: Maria João Teles Grilo
A ideia de utopia da cidade como cidade ideal é um conceito renascentista. E, se nenhuma utopia posterior aos finais do século XV provocou o entusiasmo arquitectónico que o humanismo renascentista produziu, (imbuído de uma constelação de ideias em parte católicas e científicas), o século XX e a Arquitectura Moderna voltaram a ser movidos por um impulso utópico.
Dois modelos catalisaram, sobretudo, o imaginário moderno da urbe: a cidade futurista, “cujo dinamismo se aproxima de uma absoluta orgia de energia” (e que está subjacente em todos os planos posteriores), e a Ville Radieuse, que ainda hoje domina o imaginário da cidade/metrópole.
Giedion, com base em Wolffin, introduziu a noção de espaço-tempo (ou 4.ª dimensão), um conceito que vem da astronomia e da física natural e que é essencial na Arquitectura Moderna e na Arquitectura Contemporânea, sobre o qual se debruçaram todos os grandes arquitectos, nomeadamente Wright, Corbusier, Kahn, Vieira da Costa, Perret, Rem Koolhaas, entre outros.
Evolução urbanística da cidade: As primeiras fases da expansão física
O primeiro plano de urbanização foi elaborado em 1942 por Etienne de Grôer e por D. Moreira da Silva. Propunha a criação de cinco cidades satélites de 50 mil habitações dispostas em semicírculo, em torno do aglomerado existente e ligadas entre si por uma estrada de circunvalação.
Da aplicação desse plano, a cidade não guarda memória. A baía e o planalto sempre foram os dois núcleos em torno dos quais se desenvolveu a cidade.
As primeiras fases da expansão física deste período conservam a estrutura de base da orgânica existente, feita de percursos ordenadores de edificações de baixa densidade que ligam os pontos de desembarque aos núcleos de expansão que se estendem ao longo da costa. Sob a influência atractiva do ‘plateau’, a cidade alta organiza-se em linhas paralelas à costa e em formas circulares, formando uma malha regular fechada.
A construção da modernidade
Luanda vive, desde os anos 50, um crescimento tumultuoso. Internacionalmente, as primeiras independências em África, o “boom” do valor das matérias-primas, que gerou um incremento na economia privada, e a pressão internacional da ONU sobre Portugal para dar a independência às colónias foram as razões de fundo para a grande transformação operada nas cidades angolanas e mais ainda na capital.
A cidade dos quintais e dos sobrados foi rasgada por avenidas e contaminada pela febre de aspirar a metrópole africana.
Num processo cheio de contradições, o poder colonial tentava sedimentar a sua posição, enquanto a sede de independência e a de modernidade em profunda negação ao fascismo português e à dominação faziam sentir-se na afirmação de uma cidade moderna anti-regime.
Foi o início da bipolarização da cidade entre modernidade e periferia de musseques e bairros sociais feitos para negros. À burguesia nacional foram retirados poderes e empurrada para as áreas mais distantes dos centros - os musseques, o que tornou crescentes as revoltas.
De 50 a 60, a cidade cresceu sobre a planície, segundo uma disposição planimétrica em cunha, contrariada pelo eclodir de residências espontâneas. A chamada cidade informal começa a sua expansão e é cerne da construção da consciência urbana pró-Independência.
A clivometria (inclinação) exasperada da sua geografia produziu o desenho de fortes margens no interior do construído e deixou em aberto a definição dos seus limites, fixados apenas pela morfologia do terreno.
Erguida sobre um peristilo de ‘pilotis’ (pilares esguios e elegantes, que sustentam o edifício), a cidade do cimento dos anos 60 dá-nos a sensação de uma arquitectura suspensa e afirma a intenção declarada de representar uma moderna identidade.
Com fortes referências ao Movimento Moderno, trazidas directamente das fontes e digeridas nas bibliotecas particulares, sempre actualizadas, a cidade acusa, ainda hoje intactos, a aplicação de muitos dos característicos elementos corbusianos como o ‘tecto-jardim’, o ‘brise soleil’, o plano de vidro ensombrado por palas de protecção e o corpo construído como caixa aberta.
A influência fundamental vem do Brasil e não de Portugal, onde o fascismo proibia a expressão moderna. Faltou-lhe a plástica exuberante da arquitectura brasileira, mas tem como expressão mais sensível os remates de cobertura, dominantemente em terraço, onde pequenas formas montanhosas, vulcânicas e geométricas irrompem das coberturas, como jardins de pedra que, na atmosfera, desenham linhas visuais abstractas, que dançam para os Deuses, totalmente visíveis só num voo de pássaro.
Com um clima tropical quente e húmido, uma temperatura média de 26 graus e uma humidade relativa de 80%, a orientação relativa à irradiação solar e aos ventos dominantes, associadas às difíceis condições morfológicas, é uma das premissas que limitam drasticamente o leque de opções e conduzem a soluções específicas sob o ponto de vista topológico, obrigando a criar elementos emergentes que respondem à necessidade de assegurar a continuidade entre a orografia e o edificado.
A influência directa de modelos metropolitanos e a interpretação das condições climáticas produziram uma solução tipológica que representava uma adaptação dos ‘tipos’ importados dos países onde o Movimento Moderno mais se afirmava. Definem a cidade belíssimos objectos modernos, cujo levantamento sistemático urge fazer e cuja destruição urge parar.
Vasco Vieira da Costa, Simões de Carvalho, Pinto da Costa, os irmãos Castilho e tantos outros são nomes singulares na produção arquitectónica da cidade. O primeiro (Vasco Vieira da Costa), que de 45 a 48 trabalhou com Le Corbusier, o mais famoso arquitecto do século XX, e com ele participou do grupo fundador ‘ATBA: T de Paris’, tem, em Luanda, uma vasta obra, cuja exemplaridade didáctica assenta numa aturada investigação sobre temas específicos da construção na África Austral e constitui o único exemplo de manualística produzido em Angola sobre essa problemática.
Objectos de referência como o Mercado do Kinaxixi, destruído, o edifício das Obras Públicas, o edifício de habitação social para os servidores do Estado, entre outras coisas, assumem-se como marcos na cidade, criando uma ressonância cultural cujo valor é internacionalmente conhecido e internamente desprezado, infelizmente.
A arquitectura cosmopolita e nacionalista de Vasco Vieira da Costa
Em Vasco Vieira da Costa, a arquitectura e a paisagem, experiências lúcidas e separadas, são protagonistas de um debate no qual progressivamente se contradizem, se adaptam e aclaram, respectivamente, os seus significados. Uma obra que acusa uma grande consciência social, uma recusa ao poder colonial, que o faz ser afastado da Câmara Municipal e excluído das obras públicas.
Pelo contexto histórico, político e geográfico, os países que foram colonizados até 60/70 (as colónias portuguesas até 75) possuem um património de arquitectura moderna valioso e inovador.
As cidades angolanas são disso exemplo. Profundamente transformadas e ampliadas depois da 2.ª Guerra Mundial, por força da pressão internacional sobre Portugal para dar a independência às colónias, acentuada pelo início da Luta Armada de Libertação em Angola (1961), o país torna-se palco privilegiado de experiências para arquitectos angolanos e portugueses que, longe do distante de Portugal, dialogavam directamente com o Brasil e França, aonde iam beber influências, apropriando-se dos seus ideais e reinterpretando-os.
O salazarismo fechava os olhos, e o boom da especulação imobiliária, favorecida pela subida dos preços das matérias-primas no mercado internacional, ditava as regras e criava um campo de liberdade que permitiu a produção de um número significativo de obras paradigmáticas e singulares. A apropriação do espaço em Vasco Vieira da Costa faz-se pela equação do espaço interior e exterior em África, resgatando cada lugar em Angola.
A ocasião de projecto era um pretexto de investigação que elegia a localização como o lugar da mudança, e o desenho do corpo como se ensaiasse também o desenho da cidade. Todos os seus projectos têm uma atenção às relações de tipo urbano entre edifício e edificado: a implantação no lote, a relação entre o edifício e a estrada, a sucessão de espaços públicos até à célula privada, numa hierarquia de valor urbano.
Os edifícios são compostos por vãos abertos e grelhas, e organizados por transições entre o espaço privado, o espaço semi-privado (varandas e terraços), semi-públicos (galerias e áreas colectivas de uso de todos os moradores, lavandarias comuns, salas de convívio) e a cidade.
A noção de espaço-tempo em Vasco Vieira da Costa é desenvolvida e extrapolada para a cidade: permeabilidades, espaços de relação/transição, interpenetração, suspensão e valores da modernidade são, nesse arquitecto, também valores urbanos, o que faz dele o grande arquitecto nacionalista e visionário em relação à contemporaneidade.
Na sua ânsia de mudança, há uma ânsia de construir o espaço como uma celebração da cidade liberta, moderna, como um grito anticolonial. E talvez, por isso, dos edifícios de arquitectura da cidade de Luanda, dos quais a população se apropriou afectivamente, os de Vasco Vieira da Costa parecem ser lidos como uma pertença mútua.
Existe uma alma e um carácter que persistem, mesmo com as muitas alterações a que têm sido sujeitos desde os anos de guerra. Lembram-me sempre animais serenos, deitados ao sol, que olham ironicamente para o passar convulsivo da história.
Mas, a celebração do lugar e o questionamento permanente que gravou em todas as suas obras falam de um debate sobre a arquitectura em África, os ideais do MM, a reinterpretação dos sonhos de Marx e de Le Corbusier, numa terra onde, numa apostada oposição ao fascismo português, nada fosse mais natural, nada parecesse mais possível do que a utopia.
Em 1949, quando regressa a Luanda, vindo de Paris, a cidade dos sobrados e quintais estava mergulhada num crescimento tumultuoso. Vasco Vieira da Costa impõe-se a um desafio provocador: baralhar as cartas, mudando as regras do jogo que o poder colonial encobria.
Três são os seus edifícios de que falarei, por constituírem arquitecturas, exemplos paradigmáticos da investigação e experimentação sobre temas caros ao MM, bem como interpretações dos principais conceitos arquitectónicos, sociais e económicos da utopia do século XX: o Mercado do Kinaxixi, o bloco de habitação colectiva para os servidores do Estado e o edifício da Mutamba, hoje Ministério das Obras Públicas.
Num golpe de génio, Vasco Vieira da Costa sintetiza, literalmente, uma construção espaço-tempo, na sua integridade: o corpo, aparentemente unitário, foi ‘esvaziado’ em todas as direcções: de cima a baixo e de dentro para fora.
Também aqui, a compreensão desta quarta dimensão é apenas conseguida pelo corte transversal, peça de desenho central da arquitectura do movimento moderno, onde se percebe, em qualquer ponto, os espaços interior e exterior interpenetrados num jogo de multiplicação de ‘quadros’, de visões potenciais, dadas pela percepção obtida de diversos ângulos.
Paredes brise-soleil, grelhas pré-fabricadas que estruturam a relação entre os volumes vazados, pórtico de duplo pé direito, pilotis brilhantes e a decoração policromada são elementos arquitectónicos característicos da sua arquitectura.
Superfícies permeáveis face às quais a cidade se coloca e elementos fixos através dos quais a cidade dialoga são, particularmente, bem desenvolvidos no edifício de escritórios destinado a uma companhia de automóveis na Mutamba (para onde se deslocou o centro da cidade nos anos 50) e hoje usado como Ministério das Obras Públicas.
Um edifício que se implanta como ‘elemento’ de ligação de duas praças resultantes. Um pórtico de duplo pé direito em forma de U, recuado em relação às margens do gaveto, e sobre o qual assenta um corpo de mais de 40 metros de altura de dupla pele.
Fechado e mecânico por definição, torna-se aqui comunicante com a atmosfera através da dupla lamela feita de uma renda geométrica, que desmaterializa o corpo e se assume como um ecrã abstracto e suspenso e sem compromissos com a continuidade, sobre o qual se projecta o caminho sombreado do sol.
O tema do edifício do trabalho é equacionado aqui como forma de explicitar na uniformidade as necessidades do trabalho colectivo: a estrutura dos quebra-sóis não acusa as secções do edifício nem torna possível a leitura da individualização dos locais de trabalho.
Em 1965, Vasco desenha um edifício de habitação colectiva de baixo custo, tema ao qual dedicou a sua investigação no século XX. A unidade colectiva de habitação, a equação do custo controlado e da dignidade da vida urbana, o exercício da cidadania e a partilha do bem comum são problemáticas da utopia social que desenharam no século XX o rosto da esperança de uma maior equidade social. Temas caros a Vieira da Costa, que entendia a arquitectura como uma profissão de responsabilidade social e aos quais dedicou reflexões e ensaios sobre essa área do saber em Angola.
E, aqui, o projecto fez-se instrumento de reflexão, entendido segundo um forte cunho ideológico num brilhante exercício sobre o fluir do espaço, da luz e do vento, numa rigorosa aplicação de soluções bioclimáticas.
Uma atenção às ventilações cruzadas e às tipologias de distribuição, ensaiadas como uma hierarquia de espaços urbanos feita de sequências de espaços públicos, semipúblicos e privados, numa subtil transição cadenciada de espaços, como frames de um filme sobre o correr do tempo e da vida da cidade, simplesmente emoldurados desde o interior.
O caminho dos homens e o caminho dos ventos, aqui sustentados pela estrutura à vista, organizam as circulações num corpo sobre ‘pilotis’ que se implanta sem fazer terraplanagens, como em todos os seus projectos.
As soluções climáticas, para que o edifício respire naturalmente, são uma preocupação constante das soluções encontradas e desenham espaços vivenciais de um grande conforto térmico.
A cidade bipolar
Dominação e ‘dependência’ actual têm determinado a forma dualista da cidade. As duas estruturas que a compõem têm evoluído separadas por escolhas ainda rigorosamente actuais: uma destinada às funções do domínio da classe dirigente, estruturada segundo os modelos da cidade europeia; outra destinada à reprodução material dos recursos urbanos necessários ao funcionamento do sistema centralizador.
Essa, entendida como variante da primeira, alimenta, ainda hoje, e com continuidade, a reserva de trabalho da cidade e reproduz-se sem qualquer rigidez social ou física e sem investimentos que garantam mais do que a pura sobrevivência.
Contudo, os novos compromissos continuam a ser o desenvolvimento económico, a equidade social, a qualidade ambiental e a preservação dos recursos não-renováveis. E, se num olhar superficial parece haver uma ruptura entre modernidade e contemporaneidade, a continuidade é profunda como um rio que corre subterrâneo.
Por dentro
Nascida na cidade do Lubango, província da Huíla, Maria João Teles Grilo tem uma Licenciatura em Arquitectura, pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, 1984, e um Doutoramento em Urbanismo, pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, em 2014.
As suas funções actuais e a actividade profissional estaõ concentradas no ramo do Urbanismo e da Arquitectura, ao mesmo tempo que é administradora e arquitecta da empresa METAPOLIS – Planeamento, Arquitectura e Consultoria, desde 2004.
É igualmente consultora para projectos de investigação sobre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), mais especificamente Angola, onde deixou a sua marca em vários projectos e várias consultorias de relevância, como a Urbanização Viana Park e de Talatona, em Luanda, bem como noutras províncias angolanas.
Tem feito inúmeras comunicações em congressos internacionais de Arquitectura e Urbanismo, bem como é autora de várias publicações relacionadas com a arquitectura e o urbanismo.
Foi professora da disciplina de Projecto de Arquitectura, na Universidade Lusófona, em Lisboa, entre 1996 e 1999, e de Projecto de Arquitectura e Teoria da Arquitectura, nas universidades Agostinho Neto, Lusíada, Metodista e a Universidade Privada de Angola (UPRA), em Luanda, entre 2000 e 2012.
Enquanto arquitecta, os projectos que realizou ao longo da sua carreira apresentam uma enorme diversidade de competências, tanto a nível da arquitectura, planeamento e consultoria.
No seu atelier (METAPOLIS – Arquitectura, Planeamento e Consultoria), lidera uma equipa de arquitectos e investigadores de diversas áreas, que produzem soluções e desenham para as novas necessidades urbanas, com um olhar global e uma sensibilidade local e cultural.